Desarmar a Linguagem
por Cassiano Quilici – Artes da Cena
Talvez, o mais urgente
naqueles tempos difíceis,
não fosse tanto
tentar dissecar nossa crise
com as lentes do especialista
mas,
antes de tudo
retornar às condições primeiras
da criação
de uma abertura,
sintonizada com o espaço
que precede os pensamentos.
Dar lugar, assim
à aparição
da nossa frágil presença
rodeada de fantasmas,
para que se possa contemplá-la
com calma prontidão
sem orgulho ou ressentimento,
entre suaves respirações
quando a mente,
una com o corpo,
atravessada pelo sopro
que anima
todas as formas
humanas e não humanas
visíveis e invisíveis
sente as finas conexões
entre todos os reinos
e o eterno encadeamento
de nascimentos e mortes,
na memória ancestral da Terra,
guardada nos ossos e nas pedras.
Esta percepção rejeitada
pelo homem carcaça,
o indivíduo enredado nas fabricações
das máquinas de captura
da atenção.
Esta qualidade fundamental,
que sustenta as escolhas
e as direções a tomar,
nas encruzilhadas
de mundos perigosos,
libertando a energia
dos círculos viciosos
e de todo um lixo acumulado
em momentos de vida desperdiçados,
que se repetem.
Seria preciso, pois
redescobrir
a arte de interromper
mesmo que por um breve instante
os desejos puxando o mundo para si,
a crispação dos pensamentos,
abrindo brechas e vazios
por onde um sereno frescor
pudesse reavivar
o espanto e a admiração
pela preciosa oportunidade
de uma experiência desperta
desvencilhada dos entraves
da ignorância impregnada
que parecia multiplicar-se,
em estratégias de guerra,
nunca antes imaginadas,
Nestes tempos de avanço e progresso
que fazem mais atrofiar
capacidades vitais,
mergulhadas
num espesso esquecimento.
Seria precisa, pois
com paciência e parcimônia
desarmar a linguagem
de todo cinismo e presunção,
reaprendendo a dizer
agora
as palavras
respiradas no silêncio.